quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A árvore de Natal da minha casa




A árvore de Natal do Ibirapuera é mais bela que a árvore da minha casa. Mas devo dizer, pedindo licença a Fernando Pessoa, que a árvore de Natal do Ibirapuera não é mais bela que a árvore daminha casa. Porque a árvore de Natal do Ibirapuera não é aquela de pouco menos de um metro que está lá em casa.

A árvore de Natal do Ibirapuera é enorme, demandou investimentos, patrocínios, contou com o trabalho de dezenas de operários. Já tem tradição e, para os moradores da capital, é um marco que guarda a memória dos anos passados e antecipa o fim de mais um período de expectativas, conquistas e, provavelmente, frustrações. Iluminada em grande festa, a árvore de Natal do Ibirapuera passa a atrair milhares de pessoas que se deslocam em longos fluxos de carros que ali deságuam (ou ficam parados). Tudo mundo sabe onde fica a nova atração da noite paulistana.

Mas poucos verão a árvore deNatal lá de casa.

Ninguéma acompanhou sendo erguida, desde o momento de abrir as caixas, algumas empoeiradas, e recuperar também na lembrança o acervo natalino familiar, até a hora de declará-la pronta, no mesmo lugar dos Natais anteriores. E nem saberá que, lá pelo Dia de Reis, tudo voltará a ser guardado para ser reutilizado no ano que vem. Por isso, porque pertence a menos gente, concentra, acredito, maior significado a árvore de pouco menos de um metro de altura que, neste fim de semana, ajudei minha mulher e meu filho a montar e decorar.

A árvore de Natal do Ibirapuera é, do ponto de vista institucional, a própria representação do Natal, como suas similares ao redor do mundo. Diante dela, todos se encantam, emocionam, talvez até encontrem a tal magia natalina. A árvore
da minha casa não atrai a atenção dos vizinhos nem desperta emoções especiais. Meu filho sentiu orgulho por ter, ele próprio, pendurado alguns enfeites e, ao final, colocado a estrela no topo da árvore, mas logo em seguida voltou a
suas brincadeiras preferidas.

A árvore daminha casa é somente uma pequena peça no mosaico natalino. Mas, sem ela, e sem as centenas de milhões de outras árvores em centenas de milhões de casas no planeta, o Natal não seria a mesma coisa.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Você sabe para onde vai seu voto?

O assunto desta coluna talvez já seja de domínio de parte dos leitores. Encontro, porém, com bastante frequência, quem não saiba dizer com precisão como funciona o sistema eleitoral por meio do qual são compostas a Câmara dos Deputados, as assembleias legislativas nos Estados e a Câmara Distrital do DF. Um sistema, alías, que precisa de uma reforma urgente, já tantas vezes adiada, para melhor refletir a vontade do eleitor.

A eleição do presidente da República e dos governadores dos Estados é simples: ganha o candidato com mais votos. É o chamado sistema majoritário, que também elege os senadores.

Para as câmaras e assembleias legislativas, vale, no entanto, o sistema proporcional, em que as vagas são distribuídas entre os partidos na proporção dos votos obtidos por eles.

Imagine que você quer mandar para a câmara o Manoel, do PX. Ao votar nele, seu voto vai primeiro para o partido e, depois, para o candidato. Se o voto carregasse uma mensagem, ela seria mais ou menos a seguinte: quero eleger um deputado do PX e, se o PX eleger apenas um candidato, quero que seja o Manoel.

Fechadas as urnas e contados os votos, calculam-se a quantas cadeiras no parlamento cada partido terá direito. Essa é a primeira função do voto: determinar a divisão das vagas entre os partidos. Em seguida, ordenar, dentro de cada partido, os mais votados. Assim, primeiro são somados os votos dados ao PX. Se esse partido conseguir eleger dez deputados, o Manoel tem de estar entre os dez mais votados do PX para conseguir uma vaga em Brasília.

É fundamental que o eleitor entenda isso e fique atento. Ao votar no Manoel, você ajudará a eleger outros candidatos do PX, que talvez nem conheça direito. Portanto, além de analisar o candidato, é preciso analisar o partido.

E mais: se o partido está coligado com outros, o raciocínio descrito acima vale para a coligação. Ou seja, o voto em um deputado de um partido da coligação vai contar para determinar com quantas vagas fica a coligação toda.

Nessa eleição em que muita gente está de olho no histórico dos candidatos na Justiça, não adianta muita coisa votar num candidato "ficha limpa" se o partido dele não filtrar os postulantes. No final das contas, esse voto pode ajudar a eleger um "ficha suja".

STF à espera do juiz inexistente


O escritor Italo Calvino introduziu no universo da literatura mundial a figura do cavaleiro inexistente. Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Atri de Corbentraz e Sura é só armadura (e uma voz metálica). Mas uma armadura impecavelmente branca. Serve ao rei Carlos Magno cultivando a perfeição: segue todas as regras, tem todas as respostas, corrige os colegas e está sempre com a razão.

Tão fantástico quanto a obra de Calvino, que por razões literárias beira o absurdo, foi o rumo tomado pelo julgamento da Lei Ficha Limpa no Supremo Tribunal Federal, na madrugada de sexta-feira. Diante do empate em 5 a 5, bastante previsível, antecipado pela imprensa, os ministros simplesmente não sabiam o que fazer, ou não tiveram coragem de fazer o que tinha de ser feito. Hoje, voltam a se debruçar sobre a questão, mas os prognósticos não são animadores.

O que abriu caminho para o empate foi a falta de um ministro, deixando o tribunal com número par de juízes. Após a aposentadoria de Eros Grau, o presidente Lula ainda não indicou seu substituto. Mas isso já era sabido, assim como as posições dos ministros eram conhecidas dias antes. Ninguém se preparou para o pior.

Despidos em parte do formalismo que caracteriza os debates no STF, os ministros protagonizaram cenas patéticas. Chegou-se a dizer que o pior que poderia acontecer, caso o julgamento fosse suspenso até a nomeação do novo juiz, era que os eleitos não fossem diplomados, como se isso não envolvesse o voto e a vontade do eleitor.

Nenhum dos lados queria abrir mão de sua posição e discutiam os encaminhamentos deixando transparecer a influência do medo da derrota. Parte substancial da responsabilidade cabe ao presidente do tribunal, que está ali para conduzir os trabalhos. Além de não deixar clara sua posição sobre que regras o tribunal deveria seguir naquela situação, Cezar Peluzo se negou a dar o voto de desempate, esquecendo que muitas vezes decidir não é um direito, mas um dever. Ignorou-se que a indecisão jogaria a eleição, ao menos em parte, no vácuo legal.

Ao final, defendendo que o tribunal esperasse pelo novo ministro, Peluso alegou que qualquer decisão naquele momento pareceria falsa. Ou seja: mais do que o 11º voto, o juiz inexistente que todos esperavam que chegasse em sua armadura virginal restituiria ao tribunal o mito da verdade absoluta e objetiva e devolveria aos ministros o direito ao sono dos justos.



O rei e eu



Precisei de uns anos a mais de idade e muitos fios de cabelo a menos para assumir desavergonhadamente que gosto das canções de Roberto Carlos. Nem é necessário dizer que assisti ao show de seus 50 anos de carreira no Maracanã, sábado, pela TV. E, é óbvio, me emocionei.

Como muita gente da minha geração - acho que a maioria, mesmo -, cresci ouvindo Roberto Carlos. Ele está lá nas memórias de infância em vários momentos e de várias formas: no toca-discos (LPs, para quem não se lembra), no Fantástico, na voz de outros cantores e cantoras, como Maria Bethânia.

Na faculdade, porém, cursando jornalismo na USP, ainda em meio ao clima das Diretas-Já, o negócio era ouvir o que estivesse à esquerda, como Chico Buarque e Milton Nascimento. Muita coisa levava, então, o carimbo de "brega" ou, pior, "alienante".

A reconciliação veio ali pelo final da década de 1990, mais ou menos na época do lançamento do Roberto Carlos: Acústico MTV. O álbum foi lançado em 2001 e, apesar de não ter alcançado grande penetração entre os fãs tradicionais do cantor, foi muito bem recebido pela crítica especializada, além de servir bem à tentativa de aproximá-lo novamente do público jovem.

Nessa época, eu já era capaz de comprar briga com quem negasse que "Detalhes" é uma obra-prima. Buscava argumentos sólidos para defender o "rei", mas ainda estava um pouco distante da melhor experiência em relação a suas músicas; era algo predominantemente racional.

Apenas recentemente criei com Roberto Carlos um diálogo mais emocional e, portanto, mais intenso, ao ponto de tomar a liberdade de fazer minhas as palavras dele. Acho que é assim mesmo: para aproveitar o que há de bom nesse cantor e compositor tão popular é preciso deixar os preconceitos da juventude para trás. E não só: é preciso estar com os dois pés na vida adulta, ter muitas vezes a cabeça cheia de problemas, saber bem o que é uma alegria triste e já ter encontrado essa paz infinita do depois.

É claro que, volta e meia, levo a pecha de brega. Tudo bem. Nessas horas, não há como não lembrar os versos de Fernando Pessoa, que disse para quem quisesse ouvir que todas as cartas de amor são ridículas: "Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, como as outras, ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas. Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas".

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Generosidade e profissionalismo

Escrevi recentemente aqui sobre a importância da generosidade e as formas pelas quais, no meu ponto de vista, essa qualidade se manifesta no dia a dia, em ações às vezes discretas. Passei ao largo dessa questão no ambiente de trabalho. Agora, acompanhando de perto a atuação das equipes médica e de enfermagem que cuidam de meus trigêmeos, que nasceram prematuros e ainda estão hospital, me dei conta de que a generosidade, se entendida corretamente, faz parte do que se convencionou chamar de profissionalismo. Explico. 

Capacidade técnica é condição para que alguém possa ser considerado um bom profissional, no mercado e pelos que interagem com ele (clientes e colegas, por exemplo). Mas aqueles que se destacam não param por aí. Têm algo mais, que também não se confunde com noções externas ao âmbito profissional, como o envolvimento emocional e o sacrifício pessoal. Acredito que a generosidade é esse elemento diferenciador. 

Quem trabalha com generosidade parte da perspectiva da abundância, não da escassez; dedica-se sem a preocupação constante em se poupar; sabe que é dando que se recebe (no sentido mais correto dessa ideia), estica o braço todo, não só metade. E essa característica está presente tanto na disposição para que o trabalho seja bem feito como em pequenos gestos de atenção, uma explicação dada com paciência, um parênteses que até pode dar algum trabalho, mas vai ajudar o leitor a entender o que está lendo. A generosidade se manifesta com especial relevância no trabalho em equipe, que predomina num número cada vez maior de empresas e situações. O bom profissional é aquele que sabe trabalhar com os colegas da forma mais produtiva possível, e não consigo imaginar como isso seja possível sem ser generoso na hora de compartilhar informações, por exemplo. 

É fundamental ressaltar que tudo isso não acontece às custas de sacrifício da vida pessoal, longas horas de trabalho ou sofrimento emocional. E, sem generosidade, mesmo o técnico mais perfeito é limitado, como uma chave de fenda muito útil, mas da qual não se pode esperar nada mais. Portanto, considero a generosidade intrínseca ao profissionalismo, em vez de algo externo a ele. 

Felizmente posso dizer que essa generosidade marca 90% dos enfermeiros e médicos que cuidam do meu trio. São profissionais que aliam capacidade técnica e esse algo mais.

Generosidade no dia a dia

Poucos temas me animam tanto quanto o da generosidade. Por isso, a coluna de Fábio Santos publicada aqui na segunda-feira veio bem a calhar: além de trazer informações novas e essenciais, me levou a perguntar por que nunca escrevi sobre isso e despertou em mim a vontade de organizar algumas reflexões. 

Não é de hoje que digo que a generosidade é a maior qualidade que alguém pode ter. Falo mais com o sentimento do que com a razão, admito, até porque não é fácil definir a generosidade a que me refiro. 

Há, evidentemente, a generosidade que se expressa pelos grande atos, mas que costumam ser efêmeros. É no dia a dia que a generosidade se expressa de forma mais genuína e deixa marcas mais perenes. Dividir o espaço público sem achar que está fazendo um favor. Parar alguns minutos, no meio da correria, e perguntar a um amigo sobre a evolução de um problema que ele está enfrentando. E o que dizer de um "muito obrigado" a alguém que não vai lhe dar nada em troca? Vale também um sorriso e a acolhida àquele novo colega de trabalho. 

A generosidade, acredito, é irmã da tolerância, e as duas, primas não muito distantes da paciência. Conviver com as diferenças, dar o benefício da dúvida, aceitar o erro do outro é ser generoso. Rir de si mesmo também: uma generosidade consigo mesmo que pode surtir mais efeitos positivos que um chocolate. Da terra fértil, se diz que é generosa; também o é aquele que assume a responsabilidade da paternidade. E se ser generoso é aceitar o erro, como fica isso quando se trata da educação dos filhos? Aí, por mais paradoxal que pareça, a generosidade está tanto na aceitação da falha como na disposição para repreender e ensinar o certo. Ao educar é um pouco de si que se dá; afinal, é trabalhoso e a criança vai ganhar mais no longo prazo do que você no curto prazo. Compartilhar o conhecimento é generosidade em estado puro; vale ouro, vale mais que ouro. O mesmo se aplica ao artista que leva a público suas obras, apesar da dor da criação. Por fim, também é possível ser generoso com o futuro, ao se deixar contaminar de certa dose de otimismo. 

Ser generoso é, enfim, ser humano, até pelo prazer (um tanto vaidoso, confesso) que o ato carrega.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A convivência no condomínio Brasil

Um olhar atento sobre uma série de fatos recentes sem relação aparente entre si revela, pelo menos no meu modo de ver, uma tendência clara sobre o que caracteriza o debate dominante na agenda brasileira desta segunda década do século 21. Qualquer observador seria capaz de apontar a redemocratização como o tema dominante da sociedade no final da década de 1970 e início da década de 1980. Em seguida, veio o combate à inflação. Agora, porém, a síntese não é tão evidente, mas ainda assim perceptível: são os direitos das minorias e as liberdades individuais que estão cada vez mais em pauta.

Se o país fosse um condomínio, não seria a forma de eleger o síndico ou as dificuldades do caixa do prédio que estariam despertando os debates acalorados na reuniões mensais, mas as regras de convívio, normas de comportamento, as obrigações e regalias de cada morador e assim por diante. No condomínio Brasil, temas como o cerco ao fumo nos locais públicos, reconhecimento da união estável entre pessoas de mesmo sexo, liberdade e convivência religiosa, espaço (literalmente) dos ciclistas nas vias públicas, limites (se é que deve haver) da liberdade de expressão e até a autonomia dos pais na criação dos filhos ocupam a ordem do dia. Não que sejam as prioridades da população (saúde, emprego e educação lideram), mas mobilizam as pessoas e geram discussões por vezes até bastante irracionais.

Ainda é cedo para saber que país surgirá dos processos em curso. Essa é uma história que vai se desenrolando em capítulos e nem sempre transcorre de forma linear. Um novo e importante capítulo acontece hoje, quando o Supremo Tribunal Federal decide se a chamada Marcha da Maconha é apologia ao crime ou exercício da liberdade de expressão.

O desafio pela frente é enorme, maior até do que quando se tinha uma ditadura militar como adversária comum. Trata-se da sociedade estabelecendo suas fronteiras internas, com grupos disputando legitimamente seus espaços. Os embates, portanto, são naturais. Só não deve haver vencedores e vencidos. A violência (física ou verbal) e a imposição de soluções podem deixar sequelas no longo prazo. É preciso avançar na direção de regras contemporâneas e, ao mesmo tempo, respeitar a diversidade e lembrar que, às vezes, ir devagar com o andor leva a transformações de sustentação mais sólida.

terça-feira, 27 de março de 2012

Novela deve ter muita insensatez


Sou noveleiro assumido. Não é de hoje. Quando criança, já corria para a sala do apartamento para deitar no chão, diante da TV e, junto com a família, assistir à trama que, naquela época, era das 8h da noite. E na condição de fã comemoro alguns fatos importantes da teledramaturgia neste ano: o sucesso da reprise de Vale Tudo no canal Viva, o remake de O Astro, que estreou ontem, e o sucesso de Insensato Coração. Esse é o tipo de novela que mais me empolga, que teve em Janete Clair a grande mestra do gênero e encontra em Gilberto Braga um sucessor à altura.

Para mim, novela tem de ser assim. Tem de ter coisa que só acontece nas novelas. Reviravoltas, filhos que aparecem nos capítulos finais, casamentos improváveis, gente má o tempo todo, gente boa que fica má, gente má que dá uma de boazinha (antes de ser desmascarada), traições, mais mentiras do que verdades, vinganças, revelações que de tão inesperadas deixam o telespectador perplexo com o grau de inventividade do autor. Personagens apaixonantes que às vezes até parecem irreais, mas que quase sempre lembram alguém que você conhece, ou alguém que fazia parte de um caso que alguém que você conhece contou. Histórias capazes de despertar discussões acaloradas sobre até que ponto as semelhanças com a realidade são meras coincidências e que, apesar disso, mantêm o público grudado na telinha.

As novelas que vão na linha "crônica da vida cotidiana", repletas de cenas bucólicas e lições de vida edificantes, não fazem jus ao nome. Podem ter valor, mas não me empolgam e, por isso mesmo, acho que não devem ser associadas à melhor tradição dos folhetins. Acredito que temas que mexem com as pessoas e geram debate devem estar inseridos na trama e não apenas se servir dela para ser desenvolvidos quase como depoimentos de documentários. As novelas, tal como a arte, na definição do escritor Oscar Wilde, são inúteis. A utilidade as mataria de inanição, pois as afastaria do mundo da ficção, essencial ao ser humano desde que o mundo é mundo.

Embora não se deva esperar que as novelas ocupem um lugar que não é delas por natureza, ou seja, o da dramaturgia marcada pela complexidade, sutileza e temas de mais difícil digestão, devo dar aqui um depoimento pessoal: assim como as histórias de Agatha Christie abriram as portas para a literatura, as novelas me atraíram ao universo da dramaturgia, onde encontrei filmes e peças inesquecíveis.

Acho que este texto, publicado há algum tempo no Destak, é muito oportuno diante da estreia de Avenida Brasil, esta semana.

Gêmeos, alegria multiplicada

Junte duas mães ou dois pais de múltiplos (gêmeos, trigêmeos e assim por diante) e um dos assuntos da conversa, será as dezenas de perguntas e comentários que eles ouvem cada vez que saem na rua com seus filhos. A curiosidade é natural, e a maioria das observações é bem-intencionada. A rotina com os bebês é um dos aspectos que mais geram perguntas ("Vocês conseguem dormir?" é um clássico). Mas há também algumas engraçadas ("São todos seus?" é uma delas, bem frequente; ou "são idênticos?", mesmo quando se tratam de meninos e meninas; ou "são do mesmo pai?"; ou ainda "é de verdade ou foi tratamento?", ouvida uma única vez) e outras desagradáveis ("São trigêmeos, mas bem normaizinhos, né?").

Tudo isso faz parte da vida dos pais de múltiplos, que chamam a atenção. O que geralmente incomoda, porém, são as palavras com certo tom de piedade, comiseração - às vezes, não é exagero, quase pesar. "Deus me livre" é uma expressão que esses pais ouvem com regularidade bem maior do que gostariam. "Você deve estar desesperada. Eu já não aguento com um só... Imagino você", diz uma mãe, em solidariedade e alívio. É óbvio que gêmeos ou trigêmeos dão trabalho maior. Mas isso não significa que os pais gostem de ser lembrados disso o tempo todo.

Esses pais não andam por aí arrastando correntes. Muito pelo contrário. As mães não se sentem coitadinhas. E isso ficou evidente na festa para famílias de múltiplos realizada no domingo passado, em São Paulo, pelo Portal Múltiplos. Mais de 80 famílias reunidas para comemorar - e trocar ideias e experiências, é claro. Acima de tudo, celebrar. A imensa maioria dos pais de múltiplos se sente afortunada. Foi o que constatei com os que conheci nesses seis meses, desde que ingressei nesse universo, por conta dos meus trigêmeos (dois meninos e uma menina, bem diferentes fisicamente e de temperamento, todos do mesmo pai e da mesma mãe, e os três muito de verdade).

Por isso, quando encontrar uma família de múltiplos passeando por aí, tente evitar expressões de solidariedade por um infortúnio que muito provavelmente só existe para quem está do lado de fora. Dá trabalho, mas a recompensa é grande: sorrisos multiplicados, alegrias multiplicadas. Experimente, então, um "parabéns".

Viagem no tempo com Chico


"Ele tá velho". Foi meu primeiro pensamento assim que as luzes do palco se acenderam. Talvez fosse influência da música: "Hoje é dia de visita, vem aí meu grande amor, hoje não deram almoço, né?, acho que o moço até nem me lavou", cantava Chico no início de seu show, atualmente em cartaz em São Paulo. Não demorou muito, ele confessava que seu tempo é curto e que, avarento, conta seus minutos, "cada segundo que se esvai", na canção que fez para a moça do cabelo cor de abóbora. Também cantou a decrepitude, com um misto de melancolia e ardil, na música "Querido Diário", de seu CD mais recente. Os temas da ação do tempo e das desventuras do envelhecimento estavam lá presentes, de forma indisfarçável.

Apesar disso, a primeira impressão não ficou, nem um pouco. Canção após canção Chico Buarque comprovava seu vigor poético, tanto nas músicas antigas como nas novas. Ouvi críticas de que no show há um excesso de músicas do novo CD, obviamente menos conhecidas. Besteira. Nada, nem mesmo a adoração mais fanática de seu fãs, podem obrigar um artista a ficar encarcerado no passado.

E o que dizer da reação das mulheres, maioria na plateia, à simples presença de Chico no palco, a cada gesto seu? Os gritos de "lindo" se multiplicam e, aparentemente, até deixam o cantor sem graça, a ponto de errar a letra de "Anos Dourados", um de seus maiores sucessos. Uma sintonia com o público feminino, enfim, de causar inveja a muito marmanjo.

Lá pelas tantas, Chico estava cantando um rap, citação do trabalho do cantor paulista Criolo, que fez uma releitura de sua "Cálice". "Pai, afasta de mim a biqueira, afasta de mim as 'biate', afasta de mim a 'cocaine', pois na quebrada escorre sangue", são os versos do rapper que Chico incluiu em sua apresentação. Enquanto isso eu ainda cantarolava alguns dos antigos sucessos do compositor, da época em que fui apresentados a seus LPs (começando por "Meu Caro Amigo"), na casa de um colega de escola cuja família tinha umas ideias meio comunistas, diziam.

Conclusão: velho tô eu; Chico é um rapaz, e chega ao final de seu ótimo show sem lembrar em nada o velho Francisco da canção que abriu a noite. Uma fina ironia ("quem me vê, vê nem bagaço") que só faz o compositor que lida com o tempo com a mesma maestria com que lida com as palavras. E para quem está curioso, Chico completa 68 anos em junho.

Lição de Vinicius

"Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e situações que, azar dele, criou porque quis. Com um prosador do cotidiano, a coisa fia mais fino. Senta-se ele diante de sua máquina, acende um cigarro, olha através da janela e busca fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou da véspera, em que, com as suas artimanhas peculiares, possa injetar um sangue novo. Se nada houver, resta-lhe o recurso de olhar em torno e esperar que, através de um processo associativo, surja-lhe de repente a crônica, provinda dos fatos e feitos de sua vida, emocionalmente despertados pela concentração. Ou então, em última instância, recorrer ao assunto da falta de assunto, já bastante gasto, mas do qual, no ato de escrever, pode surgir o inesperado".

Tire o cigarro de cena e a descrição de Vinicius de Moraes no texto "O exercício da crônica" se mostra tão válido agora como quando foi escrito, no início da década de 1960.

Não pense o leitor que meu objetivo aqui é atrair qualquer sentimento de piedade pelo ofício do "prosador do cotidiano", como define o poeta. Ou, pior, algo que se assemelhe à mistura de piedade e admiração. Isso sim, e não a falta de assunto, seria imperdoável. Quero apenas compartilhar este texto que, ao menos para mim, foi um pequeno, mas precioso, achado. E fazer uma rápida reflexão: Vinícius parece localizar na demanda insaciável dos leitores, que ele chega a chamar de ingratos, a fonte primordial da qual surge a necessidade diária da crônica. Não vejo assim. Guardadas as devidas proporções, e sem esquecer as obrigações de que é feito um jornal diário, acho que aqueles que escrevem regularmente em espaços como este do Destak, também são movidos, a exemplo do que ocorre como romancistas, por necessidades próprias, cuja fonte eles próprios são incapazes de identificar.

Agora, como ninguém é de ferro, reproduzo novamente Vinicius, pedindo, tal como ele no texto, que o leitor se coloque no papel do cronista. "Dias há em que, positivamente, a crônica 'não baixa'. O cronista levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração - e nada. (...) Aí então é que, se ele é cronista mesmo, ele se pega pela gola e diz: 'Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma crônica sobre esta cadeira que está aí em tua frente! E que ela seja bem-feita e divirta os leitores!' E o negócio sai de qualquer maneira."

Estes poemas são meus


Vim para São Paulo em 1986, com 17 para 18 anos. Estava na cidade havia dois ou três meses quando entrei numa pequena livraria em frente ao Centro Cultural São Paulo, na rua Vergueiro, pertinho da avenida Paulista, e comprei A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade. Tenho o livro até hoje e volto a ele com alguma frequência. Recordei tudo isso ao ser lembrado por uma matéria de jornal que, em 2012, celebraremos os 110 anos de nascimento e os 25 anos de morte do poeta mineiro.

Dos poemas de A Rosa do Povo, alguns são mais especiais que outros e nenhum ocupa hoje um lugar tão importante como "Procura da Poesia". Ali, Drummond ensina: "Penetra surdamente no reino das palavras./Lá estão os poemas que esperam ser escritos./Estão paralisados, mas não há desespero,/há calma e frescura na superfície intata".

Não me lembro de ter sido tocado por esse poema quando tinha 17 para 18 anos. Olhando pelo retrovisor, vejo que era a flor, que "furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio", de leitura aparentemente mais simples, que me seduzia. Quando se está ansioso por anunciar o que se pensa e sente, só importa nos outros o que pensam e seus sentimentos explícitos. É difícil entender que "isso ainda não é poesia". Com o tempo, "Procura da Poesia" foi se materializando como referência, espécie de filosofia de vida, traduzindo com perfeição, mesmo que acidental, a necessidade de busca pelo essencial. "Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam./ Espera que cada um se realize e consume/com seu poder de palavra", diz o mineiro, referindo-se aos "poemas que esperam ser escritos".

Passados 25 anos, nunca tive e ainda não tenho a chave de que fala Drummond. Por isso, preciso desde sempre voltar e voltar aos que, como ele, traçaram rotas. Na transição da adolescência para a vida a adulta , "Consolo na Praia" era apaziguador, mais pela desilusão compartilhada do que pela conselho da experiência, sintetizado nos últimos versos, que agora valorizo: "Tudo somado, devias/precipitar-te, de vez, nas águas./ Estás nu na areia, no vento.../Dorme, meu filho".

"Se de tudo fica um pouco, mas por que não ficaria um pouco de mim?", pergunta Drummond. Não sei se importaria a ele saber, mas neste leitor certamente muito ficou e se renova.

Cautela e canja de galinha

Uma questão tem me atormentado ultimamente: se viver é tão complicado quanto nutricionistas, psicólogos, dermatologistas e alguns outros médicos muitas vezes fazem parecer, como a raça humana chegou até aqui? A quantidade de orientações e recomendações (o que inclui alimentos nem sempre fáceis de achar e produtos de custo pouco acessível) que alguém que acompanha a TV durante um dia recebe é avassaladora. Partem da crença de que é possível alcançar o ideal teórico; são causa e efeito da tendência generalizada de se acreditar que é possível ter controle sobre tudo.

Será que não há mais espaço para o bom senso, para a sabedoria que passa de geração para geração? Acho que o velho "cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém" ainda tem sua validade e se aplica a boa parte das situações às quais os especialistas respondem com uma lista de regras muitas vezes de difícil compreensão.

Um bom exemplo do que digo está no campo da nutrição. Nutricionistas povoam os programas de TV e os noticiários como uma frequência que nos leva a pensar que é impossível viver sem eles. O jornalista americano Michael Pollan teve o mesmo incômodo com a paulatina transformação do ato cotidiano de comer em uma complicada ciência: "Os seres humanos passaram milênios comendo bem e mantendo-se saudáveis antes que a ciência nutricional aparecesse para nos dizer como fazer isso. É possível comer de forma saudável sem saber o que é um antioxidante", diz ele. Pollan escreveu um livro, que chama "Regras da Comida", em que lista uma série de recomendações de sabedoria alimentar que ele próprio resume em três: "Comer comida. Não em excesso. Principalmente vegetais". Algum nutricionista discordaria que a regra do prato colorido (e o que dá variedade de cores são os legumes e verduras) resolve a maior parte dos dilemas de um almoço? Ninguém aqui é contra os avanços da ciência. Seria apologia da ignorância defender que as tradições prevaleçam sobre as descobertas científicas. No entanto, os melhores médicos que conheci dispunham de sólida formação e se mantinham atualizados, mas tinham ao menos uma característica dos antigos doutores que acompanhavam por décadas a mesma família: vínculo com a realidade do paciente, o que lhes permitia partir do dia a dia das pessoas que aconselhava para receitar práticas preventivas com sabedoria, que vai além do aprendido na faculdade.

O vício da insatisfação


Vale a pena ler este texto sempre atual....numa época em todos parecem soterrados em informação, estímulos, exigências, pressão etc etc


Estava no trânsito quando liguei o rádio e peguei, já em andamento, a entrevista de uma monja da tradição zen budista à rádio CBN. A monja Coen falava ao programa "Caminhos Alternativos", que vai ao ar todos os sábados, e a repórter lhe pediu uma solução para a insatisfação crescente que verificava entre as pessoas que conhecia.

"É um vício", respondeu a monja. "Nós estamos ficando viciados em ser críticos e reclamões. Somos grandes resmungões e grandes resmungonas." Visto desse ponto de visto, o mau humor cada vez maior com tudo e com todos, inclusive com nós mesmos, ganha outro significado. Vai muito além de uma saudável e necessária postura crítica frente à realidade. Vai muito além do desejo natural de que as coisas melhorem.

Nada é bom o suficiente na comparação com a terra prometida da perfeição: o trabalho perfeito, o casamento perfeito, o trânsito perfeito, o churrasco perfeito, o sexo perfeito, os filhos perfeitos e assim por diante.

Daí o antídoto sugerido pela monja: "Apreciar sua vida, que está onde você está, e não aonde você quer chegar".

Muitos veem nesse tipo de preceito do budismo (para mim, mais filosofia do que religião) o defeito da resignação. Não entendo que seja assim. A resignação é uma atitude absolutamente passiva, de desistência diante das adversidades. Não se trata disso.

O que se propõe é uma mudança de postura, de forma ativa, em relação à vida como um todo e ao dia a dia. Aceitar as coisas como elas são não significa renunciar aos esforços de melhoria, mas estabelecer o patamar a partir do qual se pode avançar. Do mesmo modo, aceitar um golpe do destino permite se desprender do passado e ter liberdade para tocar a vida em frente.

A reclamação, essa sim, geralmente é passiva. Quem reclama expressa o descontentamento e demanda uma ação, mas essa demanda vira um fim em si mesmo, um hábito viciante que não leva a lugar nenhum e até se torna um obstáculo aos passos seguintes rumo à solução.

Talvez você ainda diga: "Quem não chora não mama". Mas, convenhamos, isso só vale mesmo para os bebês, que ainda não aprenderam a lidar com suas carências, sejam elas de que natureza forem.

Por mais paradoxal que possa parecer, acredito que seja preciso largar o vício da insatisfação permanente e viver o presente para poder conseguir algum lugar minimamente satisfatório no futuro.

Razões para acreditar

Sou um otimista. Vou logo avisando, para que, mais tarde, não me acusem de ver tudo pelo lado bom. Isso não faz de mim um tolo. Sei bem das mazelas que nos cercam, mas acho que o país caminha no rumo certo em muitas áreas, com progressos visíveis.

Um bom exemplo é a educação. Há 10 ou 15 anos, havia uma percepção generalizada de que o ensino público era de péssima qualidade. Mas só isso: uma certeza vaga, cenas de escolas depauperadas na TV, raros alunos da escola pública na universidade que se supunha pública. Hoje sabemos: a educação é de péssima qualidade. O que mudou? Muita coisa.

Desde que foram criados os sistemas de avaliação - como o Enem, cujos resultados catastróficos de 2008 saíram na semana passada - e indicadores de desempenho de alunos e escolas, não apenas temos clareza de que estamos no buraco; podemos medir o tamanho do buraco. E é possível agora estabelecer metas de quanto subir a cada ano para, num prazo viável, sair dessa situação.

Sem isso, a educação continuaria refém do discurso fácil de políticos que prometem, a cada quatro anos, que o aprendizado das crianças será prioridade de seu mandato. É prioridade? Ótimo. Na próxima eleição, mostre seus resultados. Avaliar o ensino a partir de critérios objetivos e mensuráveis é uma tendência que veio para ficar e, tudo indica, vai além de mandatos e partidos. Algo parecido com o que se viu, na gestão da política econômica, entre os governos FHC e Lula.

Isso não quer dizer, entretanto, que basta estarmos no caminho certo e que, como costumam dizer autoridades da educação, leva tempo para as coisas melhorarem. Precisamos de movimento, o que pede direção, é claro, mas também velocidade.

Fatos como esses dão razão a quem acredita que há mudanças positivas no Brasil. Outro exemplo? Assistimos a uma explosão dos casos de pedofilia e abuso sexual contra crianças. Mais do que uma epidemia repentina, porém, há um significativo aumento das denúncias. O serviço de atendimento a esse tipo de violência recebeu em 2008 cerca de cem ligações diárias; em 2003, quando foi criado, eram 12. É como se o país tivesse acordado para o crime sexual contra crianças, tolerando cada vez menos uma prática que remonta à época em que os portugueses desembarcaram por aqui.

Ser otimista pode ser um problema, como alertou Fábio Santos na segunda-feira. Mas não enxergar progressos é tão grave quanto estar cego para o que vai errado. Repetir que nada melhora só reforça o imobilismo. Por isso, ainda acho que canja de galinha e uma boa dose de otimismo não fazem mal a ninguém.

Meus três novos amores

Por muito tempo na vida, tudo o que queremos é ser amados. Isso muda. Amar vai se tornando aos poucos tão ou mais gratificante. A capacidade de amar cresce à medida que nos vemos diante de novos laços, papéis, experiências. Vem chegando sempre mais gente e não falta espaço. Assim é o coração. O único território que cresce à medida que a população aumenta, de forma que a densidade se mantém constante: um habitante por infinitos quilômetros quadrados.

As novas paixões vão se somando às antigas, sem que muitas vezes estejamos prontos. Dizem que é preciso tomar cuidado com o que se deseja. Buscamos uma nova razão de viver e no meio do caminho encontramos mais do que imaginávamos. Mas não é sempre assim? Os amores, como quase tudo o que é importante, acontecem quando estamos ocupados demais fazendo planos (essa é de John Lennon). Fácil não é. E você quer o quê? Viver voando a uma altura segura? - perguntou-me certa vez um amigo que acompanhou de perto o surgimento de minha nova paixão não inteiramente planejada.

Nos últimos meses oscilei entre fascinado e atordoado diante da multiplicidade amorosa. Por trás das preocupações práticas (afinal, dá trabalho), escondiam-se o medo de não conseguir me dividir de forma satisfatória, a angústia pela possibilidade de não dar conta da demanda afetiva, a perplexidade com o novo elevado à terceira potência e, às vezes, até uma incômoda sensação de inadequação: "Talvez seja muito velho para isso".

Nada como a proximidade física para aplacar temores: o toque, a respiração, os menores detalhes transformados em fontes de descobertas. Um conhecimento mútuo que está só no começo, milímetros percorridos de um caminho de toda a vida. Passo a passo, três pequenas criaturas vão ocupando um lugar que será sempre delas. Num processo que ainda estamos distantes de compreender, são objeto do amor e agentes da transformação daqueles que as amam de forma incondicional, como já tive o privilégio de aprender uma vez, há sete anos, e estou reaprendendo.

É isso aí: desde o dia 5 de setembro, sou pai novamente, desta vez de trigêmeos, e me dedico a esses três novos amores com paixão renovada, tentando não descuidar dos demais ocupantes do meu território afetivo repentinamente expandido.

Xô, perfeccionismo

Ouvir alguém dizer que é perfeccionista me dá arrepios. Pior ainda é quando a pessoa vem com essa: "Meu pior defeito é ser perfeccionista", sem conseguir esconder o orgulho que transborda de suas palavras.

Ao longo do tempo, venho aprendendo a manter uma distância segura desse tipo obsessivo. Mas recentemente me vi às voltas com algumas características notadamente perfeccionistas no meu filho de seis anos. E isso me preocupa bastante.

Embora aterrorize quem está à sua volta, o perfeccionista é a maior vítima de sua própria patologia. Ao perseguir padrões que só ele mesmo alimenta, acaba sempre derrotado e frustrado. Em busca do ótimo inalcançável, não consegue atingir o que talvez seja o pior inimigo daquele, o bom, e assim passa a vida sem aproveitar sua graça imperfeita. Incapaz de lidar com seus erros, pune-se de formas variadas.

Felizmente, a ciência tem se dedicado a estudar o perfeccionismo, alertando inclusive para associação com outros males, como depressão e anorexia. Especialistas americanos dividem os perfeccionistas em três grupos: os que lutam o tempo todo para atender seus padrões elevados e sofrem com a autocrítica; os que esperam a perfeição das outras pessoas e costumam levar seus relacionamentos ao esgotamento; e os que querem estar à altura do ideal que, de alguma forma, convenceram os outros a esperar deles.

O problema é que, na contramão dos alertas de médicos e outros especialistas, a sociedade contemporânea valoriza e reforça características perfeccionistas, gerando doentes orgulhosos do mal que os aflige.

Parte disso, acredito, deve-se ao fato de que se tem levado para o plano individual e para o cotidiano muitos elementos do mundo das empresas, como os programas de qualidade total e as metas de desempenho. Esqueceram de dizer aos desavisados, porém, que a vida é muito mais complexa do que qualquer linha de produção e que levar à perfeição corpos, filhos, relacionamentos, casas, jantares etc., além de sua própria profissão, é muito mais difícil do que fabricar produtos que, longe de perfeitos, apenas atendem configurações preexistentes - sem exagerar nos custos, é claro.

A cultura da perfeição se espalha de tal forma que às vezes fica difícil explicar que aceitar o erro não faz de você um cúmplice do trabalho malfeito ou um pregador da bagunça desenfreada.

A receita popular para combater o perfeccionismo é de difícil aplicação por quem sofre com ele: simplesmente relaxar. Para quem ainda não caiu nessa, talvez haja um antídoto a ser aplicado desde criança: a ideia de que a satisfação pode vir da feliz e oportuna combinação de pequenas imperfeições.

Sou um doente do pé, sem cura


A poucos dias do Carnaval, uma academia de dança de São Paulo promete fazer qualquer um aprender a sambar "em apenas duas horas". Vou lá, só para dizer que duvido que funcione comigo. Sou um caso perdido.

Dorival Caymmi disse, com seu jeito todo peculiar, que "quem não gosta de samba bom sujeito não é. É ruim da cabeça ou doente do pé". Acho que sou um bom sujeito e tão ruim da cabeça quanto a maioria de nós que andamos por aí fora dos hospícios. Minha doença está mesmo nos pés.

A dificuldade começa nos ouvidos. Para mim, é um desafio achar e acompanhar o ritmo. Todos os instrumentos me atraem e, perdido na polifonia, logo estou tentando seguir vários deles. Depois, vem a falta de molejo, que se estende dos ombros aos pés, passando, é claro, pelos quadris. E o pior é que nem posso recorrer à velha e batida defesa da herança genética.

Na verdade, gosto muito de ouvir um bom samba. Como não se render à genialidade de Cartola, Ataulfo ou Paulinho da Viola? Aprecio as letras com soluções poéticas ilusoriamente simples e as melodias que dão vontade de sair dançando. Mas a vontade logo passa diante da falta de habilidade.

Não sou grande fã, porém, do Carnaval, nem mesmo como espectador. Quando criança, era levado às matinês no clube, mas ia com pouco entusiasmo, às vezes até contrariado. Lá pelos dez anos de idade, me rebelei e fui ao cinema assistir a Guerra nas Estrelas (o primeiro) em pleno dia de folia. Desde então, não quis mais saber muito da cabeleira do Zezé.

Hoje acompanho o Carnaval a distância, mas com respeito, principalmente pelas expressões mais tradicionais. Por isso mesmo, fico um tanto indignado quando, nesta época do ano, ouço tratarem a festa como unanimidade nacional, dividindo o país entre uma maioria que cai na folia e algumas aberrações que, talvez, prefiram ir ao cinema.

Até porque não é essa a realidade que observo à minha volta. Basta ver a quantidade de carros que congestionam as estradas, com pessoas à procura de algum descanso no feriado mais longo do ano. Felizmente, também há quem se preocupe em oferecer programas alternativos para quem, em vez de cair na folia, quer mais é fugir da folia. O negócio é preservar a pluralidade, mesmo na festa mais popular do país.

* P.S.: Neste ano, um casal amigo vai nos receber (eu, minha mulher, meu filho e a cachorrinha) em sua casa em Divinópolis, Minas Gerais. Vamos passar o Carnaval mais perto do mato do que da avenida.

Direito de aprender

Pode perguntar a qualquer um: não há quem discuta que é direito de todo cidadão e, portanto, de todas as crianças, ir à escola. Essa unanimidade, porém, esconde a falta de uma percepção clara sobre outro direito, tão importante quanto este primeiro: o direito que os alunos têm de efetivamente aprender.

Claro que as pessoas sabem que as crianças devem sair da escola dominando determinado conteúdo. Mas, daí a afirmar que isso é um direito inalienável de todas e cada uma delas, são outros quinhentos. É no consenso sobre esse direito que pode estar o passo fundamental a ser dado pelo país na educação pública.

Uma das razões para que o direito de aprender não seja tão levado a sério quanto deveria é a crença disseminada de que, uma vez na escola, aprender é uma consequência inevitável. Não é bem assim, como sabe quem está em sala de aula e como mostram os números: apesar do percentual elevado de crianças matriculadas nas escolas, ainda é relativamente baixo o número das que aprendem o que é adequado para sua série.

Há outros enganos quando se trata desse tema, como a ideia de que o aprendizado é tão subjetivo que não pode ser medido, o que, na prática, inviabiliza o sistema de avaliação e, portanto, a aferição do atendimento ao direito de aprender. Isso sem contar os professores que acreditam poder dizer que ensinaram mesmo quando o aluno não aprendeu, o que equivale a você dizer que vendeu algo ainda que ninguém tenha comprado.

De uns tempos para cá, felizmente, já se ouvem vozes defendendo o direito de aprender como algo tão importante quanto o direito de estar na escola. Uma delas é a do professor Francisco Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Em suas palestras, Soares é categórico: se a criança, ao final de uma etapa de ensino (seja ela uma série ou um ciclo), não sabe o conteúdo esperado, não teve seu direito atendido. E, diante dos que relegam o ensino dos conteúdos ao segundo plano, em nome do pretenso objetivo de formar cidadãos, ele não nos deixa esquecer que "ninguém é cidadão sem dominar leitura e matemática". Soares também põe abaixo um obstáculo importante no atendimento do direito de aprender ao mostrar, a partir da análise dos números da educação, que escolas que recebem crianças de baixo nível socioeconômico podem ter um desempenho de qualidade.

Da perspectiva do direito de aprender, a educação pública é uma tragédia. Guardadas as proporções, é como se a maioria das pessoas que procuram os serviços públicos de saúde continuasse cronicamente doente ou morresse. Construir escolas não basta; é qualidade do ensino a chave para assegurar o direito à educação.

segunda-feira, 26 de março de 2012

E aí, Dunga ouviu seus conselhos?


Estão convocados os 150 milhões de técnicos de futebol do país que, em época de Copa do Mundo, se dedicam quase integralmente à Seleção Brasileira. Da população, só ficam de fora mesmo dessa conta as crianças de até quatro anos, aqueles e aquelas que não sabem o que é um impedimento, os que não estão nem aí e, é claro, os chatos de plantão.
Ao chamar os 23 jogadores que vai levar para a Africa do Sul, o técnico Dunga dá início, na prática, à Copa do Mundo para os brasileiros e traz para o debate o treinador anônimo. Nos próximos dois meses, esse será o tema dominante, no bar e no almoço de domingo em família.
A figura do treinador anônimo foi eternizada por Jô Soares com o personagem Zé da Galera. Na Copa de 1982, ele ligava do orelhão para o treinador Telê Santana para pedir que a Seleção jogasse com um ponta direita. "Bota ponta, Telê!", repetia o Zé da Galera, quase sempre em desespero. E Telê, embora entrasse em campo com um ponta esquerda típico, não fazia o mesmo pelo lado direito, numa época em que os pontas já desapareciam.
Nos últimos dias, talvez o Zé da Galera tivesse ligado centenas de vezes para o Dunga, do celular pré-pago, para pedir: "Chama o Neymar, Dunga". Técnico da Seleção recebe mais pedidos que cantor de churrascaria. É normal. Os técnicos anônimos querem participar e o futebol perderia a graça se não fosse assim.
De minha parte, fico no muro, acho que Dunga teve erros e acertos na sua convocação. O principal acerto foi barrar Adriano, um jogador em claro declínio e problemas emocionais que interferem no seu desempenho em campo. Precisou de certa coragem para isso, já que Adriano foi chamado várias vezes e coerência é palavra-chave no discurso do treinador. Sobre os que ficaram de fora, é possível entender o pensamento de Dunga.
O técnico da Seleção que, em entrevista ontem, se definiu como comandante, destacou nos convocados valores como comprometimento e patriotismo, além do trabalho de longo prazo, "tijolo por tijolo". O talento que surpreende, que mexe com as convicções, que não se encaixa no que foi planejado, não tem espaço na lógica um tanto militar de Dunga. O risco que o técnico corre é ser prisioneiro de sua coerência, quase teimosia, e ficar sem jogadores criativos na hora que precisar, principalmente tendo em vista os problemas que Kaká vem enfrentando.
E você, o que achou? Dunga ouviu seus conselhos?

Mulheres podem decidir eleição

A mais recente pesquisa do instituto Datafolha de intenção de voto para presidente, divulgada no final da semana passada, traz duas tendências claras que, embora tenham sentidos opostos, se complementam.

Por um lado, observa-se um alto grau de cristalização dos votos: 89% dizem que estão totalmente decididos. Ao mesmo tempo, a pequena parcela restante não apenas declara que ainda pode mudar de voto, mas efetivamente tem oscilado bastante. São eleitores que se recusam a parar quietos, e, por isso, é mais difícil colocá-los no foco na hora da foto. Nesse cenário, as mulheres apresentam um comportamento bem particular.

Não é exagero dizer que pode estar nas mãos delas a decisão sobre quem subirá a rampa do Palácio do Planalto em 1º de janeiro de 2011.

Desde as primeiras pesquisas de intenção de voto, a candidata do PT, Dilma Rousseff, conta com uma diferença significativa de intenções de voto entre os eleitorados masculino e feminino. É o chamado "gap de gênero", que também se observa na popularidade do presidente Lula. Em meados de julho, por exemplo, enquanto 42% dos homens diziam votar em Dilma, 30% das mulheres expressavam a mesma preferência (uma diferença de 12 pontos percentuais). No caso do tucano José Serra, essa distância era de dois pontos a mais no eleitorado feminino.

Quando Dilma cresceu e assumiu a liderança nas pesquisas do primeiro turno, trouxe com ela mais votos femininos. Entre 23 de julho e 24 de agosto, a petista subiu 15 pontos entre as mulheres e 11 pontos entre os homens, reduzindo o gap para oito pontos. Na reta final, Marina Silva (PV) cresceu entre as mulheres, roubando votos principalmente de Dilma, e esse foi um dos fatores que contribuíram para a realização de segundo turno.

Entre os homens, a mudança de voto foi menor.Agora, Dilma e Serra estão empatados no eleitorado feminino com 43% da preferência. Entre os homens, a petista tem 51% das intenções de voto, ante 39% do tucano. Brancos, nulos e indecisos representam 10% do eleitorado masculino, enquanto 14% das mulheres não sabem qual dos dois escolher ou declaram que vão votar branco ou nulo.

Num segundo turno em que o vencedor deve sair por margem apertada, as mulheres, indecisas em maior número e mais propensas a trocar de candidato, podem fazer toda a diferença.

Texto publicado em minha coluna no Destak, 20/10

quarta-feira, 21 de março de 2012

A cada um seu próprio lixo

Ninguém em juízo perfeito (ou quase) saí por aí jogando dinheiro pela janela. As pessoas também não se apressam em levar seu aparelho de som novinho em folha para o meio da rua para compartilhar um musiquinha gostosa com os vizinhos.

Muita gente, porém, ainda abre o vidro do carro para simplesmente lançar suas sobras ao vento; ou deixa latinhas e garrafinhas na praia, como se um garçom fosse passar em seguida e tirar a mesa; ou coloca os sacos de lixo para fora sem se importar se o caminhão vai passar para recolher hoje, amanhã ou na semana que vem. O mesmo vale para o esgoto: apertamos a descarga e, por favor, não pergunte para onde vai tudo aquilo que não gostamos nem de nominar.

A comparação, ainda que um pouco exagerada, vale para evidenciar como tendemos a tratar como nosso só aquilo que ganhamos e valorizamos e como transferimos para toda a sociedade a responsabilidade pela as coisas que nos incomodam e das quais queremos nos livrar.

É o caso do lixo, um problema cada vez mais sério nas grandes cidades brasileiras, como mostram as recentes enchentes em São Paulo e a iniciativa da Prefeitura do Rio de instalar um "lixômetro" em Copacabana para que os moradores do bairro tenham noção da quantidade de lixo recolhido da rua.

A solução do problema vai exigir que a população aprenda a lidar melhor com suas sobras e dejetos, admitindo que cada um deve cuidar um pouco de seu próprio lixo, com menos nojo e maior preocupação com a coletividade. Jogar a sujeira de cada um no colo de todos, esperando que ela desapareça da forma mais indolor (ou menos malcheirosa) possível, está longe do caminho ideal. Se roupa suja se lava em casa, é legítimo afirmar que o lixo deve, ao menos, sair arrumado de lá.

O mínimo que se espera é que o cidadão consiga se aguentar com a lata de refrigerante ou o saco vazio de biscoito até a lixeira mais próxima. Vencida essa etapa, talvez não seja difícil manter o resto do lanche no carro até chegar em casa. E, como quer fazer valer a Prefeitura de São Paulo, passar a colocar os sacos para fora de casa no horário certo, evitando que uma parte dos dejetos acabe nos bueiros, por exemplo.

O maior objetivo, porém, é aumentar a coleta seletiva e a reciclagem no país, ainda muito pequenas. Mal sabemos como fazer isso direito, e as iniciativas existentes têm abrangência tímida.

Para isso, teremos de vencer de vez a dificuldade cultural de mexer (literalmente) com o lixo.

Educação também é emergência

Na primeira coluna dessa série sobre a educação nas eleições, escrevi que o ensino público prometia ser "um dos pontos centrais das campanhas eleitorais deste ano, tanto para a presidência como para os governos estaduais". Até agora, esse prognóstico não se confirmou; não na medida em que se esperava.

Os candidatos têm basicamente repetido meia dúzia de promessas, como a de criação de mais vagas no ensino profissional e a dita "valorização" dos professores, que nada mais é do que aumento de salários. São promessas que atendem necessidades captadas pelas pesquisas de opinião pública, que orientam as campanhas dos candidatos.

Também orientados pelas sondagens eleitorais, os candidatos centram fogo principalmente na saúde. O levantamento do Jornal Nacional , da TV Globo, divulgado na segunda-feira, apenas confirmou o que outras pesquisas já mostraram: a saúde é a principal preocupação dos brasileiros, apontada por 41% dos entrevistados. A educação aparece em segundo (16%), praticamente empatada com a segurança pública (13%).

Não é difícil entender a percepção do eleitorado. É natural que as pessoas se voltem para o que consideram mais urgente, para necessidades imediatas que, uma vez atendidas, melhoram de forma evidente a qualidade de vida. Mas não é só isso. Enquanto o acesso à sala de aula é questão praticamente resolvida, conseguir atendimento em hospitais públicos ainda é um problema para a maioria da população.

No entanto, da perspectiva do direito de aprender das crianças e jovens, a educação pública é uma tragédia. Guardadas as proporções, é como se a maioria das pessoas que procuram os serviços públicos de saúde continuasse cronicamente doente ou morresse. Construir escolas não basta; é a qualidade do ensino a chave para assegurar o direito pleno à educação. A educação também é emergência, mas cobra seu preço no futuro. É lá que a falta de um aprendizado adequado vai mostrar seus resultados danosos.

É claro que há avanços: o Índice de Desenvolvimento da Educação (Ideb) tem mostrado melhora, mas não na velocidade ideal, e ainda com grande desigualdade entre as regiões e muitas vezes num mesmo Estado.

Esta é a última coluna da série sobre educação e eleições a que me propus. Espero que tenha sido de alguma utilidade.

Texto publicado na minha coluna no Destak, 18/8

Como os nossos pais



Nasci em 1968. Lá pelos 14 anos de idade descobri a chamada MPB e os principais personagens do festival tão bem retratado no documentário Uma Noite em 67, que ainda está em cartaz no Rio e em São Paulo, e também já passou por Brasília.

Estão todos lá (ou quase). Chico, Gil, o Veloso, Roberto, Edu, Rita. Faltou Elis, que apareceu apenas em rápidas imagens e foi mencionada por Gil no episódio da polêmica passeata contra as guitarras elétricas. Mas, ao final, já com os créditos rolando, veio a justa homenagem e o público foi deixando o cinema acompanhado de sua voz: "Cantador só sei cantar; ah, eu canto a dor, canto a vida e a morte, canto o amor". Até Tom, espécie de tio dessa garotada, foi citado em alguma passagem.

Após o filme, uma ideia me perseguiu: a maior parte das coisas que aprendi nos discos veio desse pessoal, ouvindo seus LPs numa época em que eles já tinham a idade do meu pai. Para minha geração, sem muitas referências ao alcance da mão, que viveu a década perdida dos anos de 1980 e a frustração das Diretas Já que viraram Sarney Lá, a mensagem política daquelas músicas despertava a nostalgia pelo que não se viveu.

E a coisa não para por aí: as canções daqueles anos 1960 ofereciam a possibilidade de viver a fantasia inalcançável da rebeldia sem-lenço-sem-documento e a aproximação com uma multiplicidade de visões sobre amor, saudade, paixões arrebatadoras, ciúme e até mesmo sexo. Fomos apresentados às mulheres que rejeitavam o exemplo daquelas de Atenas. E aprendemos, veja só, como falar com Deus.

Sem contar que muito da identidade com um Brasil que ia além das capitais e do litoral foi possível principalmente graças às músicas dos artistas que dão o show no filme de Renato Terra e Ricardo Calil.

Como qualquer relação desse tipo, esta também não é marcada só pela admiração. A adolescência passa e é natural que venha um certo distanciamento, críticas e, pior ainda, uma boa dose de condescendência. Fica, porém, a lembrança de quando o que esses caras diziam fazia muita diferença.

É essa lembrança que sobe à tona em momentos como o que vivi ao assistir Uma Noite em 67, permitindo que os ídolos do passado ocupem o lugar que merecem no meu próprio filme.

Texto publicado na minha coluna no Destak, em 25/8.

O que mais saiu do controle com o 447

Não, este não é um texto sobre as causas do acidente com o avião da Air France, que fazia o voo 447 entre Rio e Paris e caiu no meio do Atlântico com 228 pessoas a bordo, há pouco mais de uma semana. De certa forma, é a antítese disso.

As investigações sobre o acidente com o Airbus A330-200 certamente devem revelar as possíveis causas do acidente ou, mais provavelmente, o conjunto de fatores que contribuiu para a pane geral que levou à sua queda. Isso é fundamental, tanto para que sejam corrigidas falhas, mais ou menos determinantes para o acidente, como para que as famílias das vítimas possam receber uma indenização justa, por meio de acordo com a companhia aérea ou na Justiça.

Apesar disso, sempre restará a percepção de que o acaso, o imponderável, agiu nesse caso. Como em muitos acidentes aéreos e várias outras pequenas tragédias do dia a dia (no trânsito, em casa, no trabalho), muitas vezes é a combinação improvável de acontecimentos que leva ao resultado. Ou, por outro ponto de vista, é preciso que várias coisas saiam direito para que o pior não ocorra.

O problema é que, com o avanço tecnológico, os programas de qualidade total dentro das empresas, a excessiva racionalização das relações e as receitas dos livros de autoajuda, muita gente alimentou a ilusão meio infantil de que tudo pode ser controlado. Acredita-se cada vez mais que é possível criar ambientes 100% seguros, que dá para achar explicação para tudo e que sempre haverá alguém ou algo para ser responsabilizado pelos problemas.

Aí surgem fatos como esse e mostram que não é bem assim, jogando todos dentro de um paradoxo: por mais que se invista em segurança (e é preciso mesmo seguir investindo), nos mais diversos setores, não será possível evitar completamente que acidentes aconteçam; o acaso ainda vai desempenhar seu papel.

Felizmente, o acaso favorece mais à vida. A ciência nos mostra que, caso contrário, talvez o homem não caminhasse sobre a Terra hoje. Quando isso ocorre, alguns chamam de milagre, e, se é para chamar assim, podemos dizer que o cotidiano está repleto de discretos milagres.

Às vezes, uma distração pode ser fatal; às vezes, é preciso estar distraído para que algo de bom lhe aconteça. Aceitar a natural falta de controle sobre o que nos cerca ajuda a conviver com pequenos (e até com grandes) problemas do dia a dia, além de fazer com que cada um exija menos perfeição de si mesmo, dos outros e de tudo o mais.

Razões para acreditar

ou um otimista. Vou logo avisando, para que, mais tarde, não me acusem de ver tudo pelo lado bom. Isso não faz de mim um tolo. Sei bem das mazelas que nos cercam, mas acho que o país caminha no rumo certo em muitas áreas, com progressos visíveis.

Um bom exemplo é a educação. Há 10 ou 15 anos, havia uma percepção generalizada de que o ensino público era de péssima qualidade. Mas só isso: uma certeza vaga, cenas de escolas depauperadas na TV, raros alunos da escola pública na universidade que se supunha pública. Hoje sabemos: a educação é de péssima qualidade. O que mudou? Muita coisa.

Desde que foram criados os sistemas de avaliação - como o Enem, cujos resultados catastróficos de 2008 saíram na semana passada - e indicadores de desempenho de alunos e escolas, não apenas temos clareza de que estamos no buraco; podemos medir o tamanho do buraco. E é possível agora estabelecer metas de quanto subir a cada ano para, num prazo viável, sair dessa situação.

Sem isso, a educação continuaria refém do discurso fácil de políticos que prometem, a cada quatro anos, que o aprendizado das crianças será prioridade de seu mandato. É prioridade? Ótimo. Na próxima eleição, mostre seus resultados. Avaliar o ensino a partir de critérios objetivos e mensuráveis é uma tendência que veio para ficar e, tudo indica, vai além de mandatos e partidos. Algo parecido com o que se viu, na gestão da política econômica, entre os governos FHC e Lula.

Isso não quer dizer, entretanto, que basta estarmos no caminho certo e que, como costumam dizer autoridades da educação, leva tempo para as coisas melhorarem. Precisamos de movimento, o que pede direção, é claro, mas também velocidade.

Fatos como esses dão razão a quem acredita que há mudanças positivas no Brasil. Outro exemplo? Assistimos a uma explosão dos casos de pedofilia e abuso sexual contra crianças. Mais do que uma epidemia repentina, porém, há um significativo aumento das denúncias. O serviço de atendimento a esse tipo de violência recebeu em 2008 cerca de cem ligações diárias; em 2003, quando foi criado, eram 12. É como se o país tivesse acordado para o crime sexual contra crianças, tolerando cada vez menos uma prática que remonta à época em que os portugueses desembarcaram por aqui.

Ser otimista pode ser um problema, como alertou Fábio Santos na segunda-feira. Mas não enxergar progressos é tão grave quanto estar cego para o que vai errado. Repetir que nada melhora só reforça o imobilismo. Por isso, ainda acho que canja de galinha e uma boa dose de otimismo não fazem mal a ninguém.

Primeira coluna publicada por mim no Destak